sexta-feira, 29 de abril de 2011

Inesgotável realidade:



Há uma linha muito ténue entre o amor e a perda de tempo.

domingo, 17 de abril de 2011

Souvenir de bairro:



A viúva-da-casa-dos-arcos sempre foi velha.

Sempre falou por palavrões e usou vestidos de xadrês encardidos.

Sempre escarrou à porta, como um taberneiro bêbado.

Sempre bisbilhotou a vida de todos, empolando depois as histórias de forma maldizente.

Como conseguiu enfeitiçar o marido a casar com ela ninguém soube.

(Lamentava-se a infeliz sorte de tão honesto e trabalhador rapaz...)

Não tiveram filhos. Nunca houve visitas de sobrinhos.

Não tinham animais. Nem plantas.

Não comiam bolos nem carne estufada.

Não tinham televisão e também não dormiam juntos.

A viúva-da-casa-dos-arcos espreitava a violência doméstica que se passava diante os seus olhos, com ar guloso e sádico.

E quando a polícia lhe pedia indicações, não sabia de nada.

Nunca ajudou. Não se comovia.

Nem mesmo quando me viu, na pequenez dos meus 5 anitos, gritar.

Ou quando descobriu o marido, já sem vida, no hall de entrada.

(Conta-se que primeiro tomou o pequeno-almoço e só depois é que chamou a ambulância.)

A viúva-da-casa-dos-arcos regateava no supermercado que tinha o direito de provar a fruta antes de comprá-la.

Enchia, depois, a pança de alperces e bananas e pagava apenas uns escassos bagos de uva.

Usava sempre os mesmos chinelos pretos de plásticos, quer fizesse sol, quer estivesse chuvoso o dia.

Não tinha casacos nem chapéus.

Não se perfumava, apesar de ter sempre as unhas cortadas e os dentes limpos.

Nunca adoeceu.

Não ia ao médico.

E nunca levou qualquer vacina.


Seria, por isso, com espanto, que o bairro acordaria ao saber da sua ausência.

E com perplexidade por ver que sobrinhos distantes se fizeram próximos, habilidosos em pilhar os bens e colocar tabuletas.


Porém, apenas reinou uma sensação nos moradores:

vazio.

Aquele vazio que chega a assemelhar-se a alívio, mas que em público se apelida de algo socialmente menos reprovável, como pena.


Parece que a casa-dos-arcos está à venda...

segunda-feira, 4 de abril de 2011